É certo que num pacto sinalagmático, em que as cláusulas devem propiciar a autonomia da vontade, sobretudo pela liberdade de contratar, não se pode superar os limites estabelecidos pela cláusula geral da boa-fé, como orienta o Código Civil brasileiro: “Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. E pelo pacta sunt servanda, por meio do qual se estabelece lei entre as partes, a própria obrigatoriedade contratual, compreende-se que comete ato ilícito aquele que exceder manifestamente a boa-fé, que rege as relações jurídicas obrigacionais, como determina o art. 187, do mesmo código.
Portanto, a necessária introdução dá conta de que a harmonia e a probidade são padrões a serem observados desde a fase das tratativas até mesmo depois da conclusão: “Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé” (Código Civil brasileiro). Trata-se da fase pós-contratual, porque a boa-fé objetiva é composta de deveres anexos, quais sejam, da cooperação e da confiança. Não se cogita, por exemplo, desprezar o consumidor sem o devido acompanhamento ou sem atender ao direito de arrependimento que lhe assiste.
Pensemos na hipótese de um locatário ser cobrado, de forma indevida, por questões que extrapolam o âmbito da locação. Após ingressar no bem, resguardado pela posse direta, com todos os poderes que lhe garantem o uso e a fruição, recebe constantes intromissões, no sentido de sujeitar-se, em decorrência da pressão exercida pelo locador, supostamente em condição de poderio econômico e social, à disposição de parte do imóvel para acomodação de pertences do locador. Isto é exercício arbitrário das próprias razões, rechaçado por lei.
A lei do Inquilinato assim define, quanto à proteção do locatário e de sua posse direta: “Art. 22. O locador é obrigado a: II - garantir, durante o tempo da locação, o uso pacífico do imóvel locado; [...]”. Logo, se um proprietário ultrapassa esse limite, estará sujeito à responsabilização legal e à penalização imposta por contrato, em cláusula penal, pelo uso indevido, por exceder os limites da locação.
Nesses termos, entende-se que o lesante, ainda que indevidamente se arvore do direito de propriedade, estando caracterizado o ato ilícito, deverá repará-lo. E a reparação, em esfera cível, deve ser exercida pela indenização, com o quantum correspondente para tentar restaurar os prejuízos psicofísicos porventura suportados pelo lesado, em âmbito extrapatrimonial. Não se pode olvidar de uma possível reparação material, pois que o locatário deixa de gozar plenamente de sua posse. O Código Civil brasileiro assim dispõe:
“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
“Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.
A jurisprudência e a doutrina pátrias pacificamente amparam o locatário que sofre interferência abusiva do locador, pois que deixou de ter o cuidado necessário, nos limites impostos pelo princípio da boa-fé objetiva, e pelos deveres anexos da confiança, da lealdade e da cooperação:
“Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. OFENSAS E AMEAÇAS PROFERIDAS PELO LOCADOR CONTRA O LOCATÁRIO COM O OBJETIVO DE DESOCUPAÇÃO DO IMÓVEL. CONDUTA ILÍCITA COMPROVADA. DANOS MORAIS PESSOA JURÍDICA CONFIGURADOS. QUANTUM INDENIZATÓRIO MANTIDO. Trata-se de ação de indenização por danos morais decorrentes de ofensas e ameaças perpetradas pelo locador (réu) contra a empresa locatária (autora) com o objetivo de desocupação do imóvel, julgada procedente na origem. O artigo 927 do Código Civil prevê que aquele que, por ato ilícito causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Por sua vez, o artigo 186 do precitado diploma legal menciona que aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. O conjunto fático-probatório colacionado aos autos é suficiente para comprovar o abuso de direito praticado pelo demandado na tentativa de que a empresa autora desocupasse o imóvel legitimamente locado. A prova testemunhal serviu para corroborar as alegações deduzidas na exordial e comprovar a conduta hostil e abusiva adotada pelo demandado, o qual, constantemente, se dirigia até o imóvel locado à empresa autora proferindo ameaças e ofensas. A questão acerca da desocupação do imóvel se encontrava, à época, sub judice, tramitando duas ações envolvendo a questão (uma renovatória de contrato de locação e outra de despejo) razão pela qual o demandado jamais poderia ter adotado conduta com o objetivo de constringir a parte autora e forçar a desocupação do imóvel. O dano moral vivenciado pela empresa autora restou evidenciado nos autos, mormente pelo depoimento de duas testemunhas que afirmaram terem deixado de comprar e frequentar o estabelecimento autor em razão das constantes confusões causados pelo demandado em frente ao local. Acrescente-se, ainda, que a prova dos autos demonstra que as investidas do demandado contra o imóvel, inclusive retirando telhas do local, causou infiltração que atingiu parte das mercadorias expostas à venda. Por fim, valorando-se as peculiaridades da hipótese concreta e os parâmetros adotados normalmente pela jurisprudência para a fixação de indenização, em hipóteses símiles, o valor de R$ 5.000,00 (...) arbitrado na sentença está adequado, pois de acordo com os critérios da razoabilidade e proporcionalidade. DUPLA APELAÇÃO. APELAÇÕES DESPROVIDAS.(Apelação Cível, Nº 70082350950, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Niwton Carpes da Silva, Julgado em: 26-09-2019). (Grifo nosso)”.
“Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. LOCAÇÃO. CASO CONCRETO. DESPEJO E CORTE DE FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA E DE ÁGUA EFETUADO PELA LOCADORA. CONDUTA ARBITRÁRIA. As sanções pelo descumprimento contratual devem ser as contratuais e legais, não podendo a locadora providenciar a retirada de bens do imóvel e o corte de luz e de água, sob pena de praticar conduta ilegal e abusiva, consistente no exercício arbitrário das próprias razões. DANOS MATERIAIS. Não estando devidamente comprovados e quantificados os danos materiais sofridos, improcede o pedido, no ponto. DANO MORAL CARACTERIZADO. INDENIZAÇÃO DEVIDA. VERBA INDENIZATÓRIA. CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO. Quantum indenizatório que deve atender adequadamente o objetivo de ressarcir os danos sofridos e penalizar a parte demandada, sem implicar, no entanto, enriquecimento indevido à parte autora. SUCUMBÊNCIA. Com o provimento do apelo, devem ser redimensionados os ônus da sucumbência. DERAM PROVIMENTO, EM PARTE, AO APELO. UNÂNIME.(Apelação Cível, Nº 70078050242, Décima Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Otávio Augusto de Freitas Barcellos, Julgado em: 19-09-2018). (Grifo nosso)”.
Deste modo, cumpre salientar que o locador deve atender aos parâmetros legais e contratuais, assim como o inquilino, para não sobejar os prejuízos apontados. Para tal, o locador deve entregar o bem apto à sua finalidade primordial, a locação, não podendo, de modo algum, perturbá-la. Assim, para manter a razoabilidade e o bem-estar, coadunando com o princípio da boa-fé objetiva, ambos contraentes têm de compreender a dimensão da negociação, que, além do mais, a não observância aos seus termos pode gerar consequências após a conclusão do contrato. O locatário, por seu turno, não deve ultrapassar o uso convencionado (art. 23, inciso II, da lei do Inquilinato), sob pena de provocar a rescisão e sofrer as demais cominações legais e contratuais que houver lugar.
Brasil. Lei 8.245, de 18 de Outubro de 1991. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 14 fev. 2020.
Brasil. Código Civil. Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 14 fev. 2020.
SANTOS, Adriano Barreto Espíndola. Dissertação apresentada como requisito à obtenção de grau de Mestre, no Curso de Mestrado em Ciências Jurídico-Civilísticas / Menção em Direito Civil, ano letivo 2013/2015, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível, n.º 70078050242, Décima Quinta Câmara Cível, Relator: Otávio Augusto de Freitas Barcellos, Julgado em: 19-09-2018.
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível, n.º 70082350950, Sexta Câmara Cível, Relator: Niwton Carpes da Silva, Julgado em: 26-09-2019.
VILAÇA, Leonardo Ferreira. Breves ponderações sobre a boa-fé objetiva nas relações contratuais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5291, 26 dez. 2017. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 12 fev. 2020.
Fonte: https://www.migalhas.com.br/depeso/320607/condutas-e-principios-reguladores-do-contrato
Itamar Espíndola Advocacia Imobiliária & Sucessória
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